Era para ser um
vaso com flores, mas amanheceu um vaso dourado com delicadas fitas de cetim entrelaçando
uma circunferência vazia. A menina percebeu o desfalque e foi só interjeições:
-Oh, não! As
flores sumiram!
Como assim,
sumiram? Não, elas morreram. Fui eu quem as tirou daí. Joguei-as fora...
A menina se
apoderou de súbito do vaso que era levinho, além de delicado. Olhou para o
interior vazio e fez um bico de desapontamento. Ou seria de descrença? O que
fosse!
- Como as flores
morrem?
Elas estragam, caem
as pétalas, ficam murchas, perdem as folhas. Não é muito diferente da gente,
não. Embora esse detalhe eu tenha ocultado dela naquele momento.
-Por que elas
morrem, mamãe?
Morrem porque
lhes falta água. Às vezes luz... Ou porque elas têm de morrer mesmo, quando dá
o tempo delas.
A menina correu
para a área de serviço; foi conferir o cesto de lixo. Ali estavam as finadas: pétalas
escurecidas nas bordas remetendo ao sombreamento delineado por um hábil
artista. Jaziam, porém, tristonhas, apagadas. O cetim enrugou em toda a
extensão da planta. Não havia o que fazer por elas. Acabou-se.
Cedo ou tarde se
chega a determinado ponto da compreensão em que a morte deixa de ser
questionada para ser aceita. Se bem que, aceitar totalmente, talvez nunca o seja
por essa eternidade que vive dentro da gente.
Nascer é bem mais fácil para a nossa infinidade, mas é a morte que dá o
tom à nossa finitude. Deu para entender? Não se trata apenas de aspectos
fisiológicos.
Coube à menina
encerrar a conversa. Distraiu-se, o que não é surpresa para seus três anos de
vivacidade.
O dia escorregou
mal-e-mal ligeiro. A noite chegou espontânea e a hora de dormir caiu como uma
luva para os bocejos das crianças. O rito para o sono começa. Escovar os
dentes, fazer a última gota de xixi, conferir a cama. Ei, cadê a boneca? Aquela
boneca de veludo que completa o aconchego das cobertas e o carinho dos dedos
que roçam a bochecha rosada da menina. A naninha de saião rodado. Sumiu,
dispara um desavisado.
-Sumiu não –
avisa a menina- Ela morreu!
Como assim,
morreu? Bonecas não morrem.
- Morrem sim!
Justifiquei que
bonecas não morrem, pois nunca foram vivas.
- Não morrem?
Então só a flor morre?
Já sentiu um
aperto no peito? Como se várias fitas delicadas de cetim amarrassem a
circunferência carnosa do seu coração? Foi essa a sensação em resposta àquela
pergunta: “Só flor morre?”
Pudera lhe dizer
que sim, mas a resposta obviamente teve de ser um não. Todos os seres vivos
morrem, desde a flor até os animais. A gente mata bactérias, por exemplo. Quem
se lembra que também são vivas? Só na hora da dor de garganta, diga-se de
passagem.
A menina estava
em pé como se guardasse a porta do armário. Nesse instante se afastou e abriu a
porta da bagunça. Foi de onde tirou a boneca. Eis o milagre: a naninha reviveu.
E assim se
encaixa a primeira peça no quebra cabeça que a gente leva a vida toda montando,
mas que, contudo, sempre nos faltará a derradeira peça.