As lembranças
da nossa vida na Inglaterra me envolvem como um abraço apertado para, em
seguida, dissiparem-se como flores de cerejeira no calafrio do outono. Esse
devaneio surge de outra lembrança da Rua Grosvenor, onde vivemos em
Southampton, e das ventanias que antecediam o inverno nas ruas precocemente
escuras, articuladas pela pressa da Lua em brilhar pungente no céu enegrecido e
gelado. Sol para quê, afinal?
Nossa casa era
recuada e cercada por um jardim de mata virgem, nos primeiros dias, até de fato
aceitarmos a incumbência britânica de manter a decência dos nossos domínios, ou
seja, arbustos e arvoredos devidamente podados, garagem livre de folhas secas e
espécimes originais de flores preservadas. Não obstante, a cerejeira que
reinava soberana no jardim da casa vizinha, por acaso geminada a nossa,
ignorava a demarcação de território e mandava para nós suas flores cálidas,
muito mais lindas quando agregadas aos ramos da árvore do que caídas no chão de
lajotas de cimento da nossa garagem.
Pior do que as
flores no lugar errado eram as ervas daninhas que cresciam em qualquer
milímetro quadrado de terra, entre as lajotas, inclusive. Nos primeiros meses
na casa, final de verão, arrancávamos as ditas cujas no braço, só que logo
voltavam a crescer ainda mais espaçosas. Em suma, não haveria como percorrer o
lar das nossas vivências na ilha da Rainha sem nos delongarmos nos aposentos da
natureza. É compreensível que os países britânicos apresentem, quem sabe, os
mais belos jardins do mundo. E também a grama mais profícua que já tive a
oportunidade de testemunhar crescer, em minha breve e remota vida de jardineira
amadora.
Tínhamos um
jardim bastante fértil nos fundos da casa, no qual vimos crescer frutas
silvestres como morangos e amoras, bem como rosas em degrade de tons quentes
para aquecer os dias frios. A magia do inverno era fazer desaparecer qualquer
indício de cor naquele quintal virtuoso, bastasse o relógio marcar quatro horas
da tarde, ou ainda menos. Daí, tudo o que se via, ou não, era breu, engolindo
todos os jardins, e casas, e pessoas. Tão grande era a fome da escuridão que
cabia todo o bairro dentro dela. Ao breu pesa a culpa pelos caracóis que
desavisada esmaguei, nas vezes em que saía do carro estacionado em frente a
nossa casa. Na nossa rua, em especial, havia postes em quantidade moderada, mas
não tanto quanto o gasto com energia elétrica pela prefeitura da cidade. Não
por menos, a herança de duas guerras mundiais pesa nos bolsos.
No final da
Rua Grosvenor, localizava-se um edifício grande e horizontal, possivelmente inspirado
na arquitetura vitoriana, arrisco-me afirmar. Se não, qualquer outro modelo
tipicamente inglês caracterizado pela montagem de tijolos vermelhos encarnados,
unidos um a um pela cal esbranquiçada, já encardida ou desgastada nos dias de
hoje. Para nossa felicidade, tratava-se da escola primária onde nosso filho
mais velho estudaria enquanto estivéssemos por ali. O mesmo caminho da roça nos
levava ao parque comunitário nos finais das tardes de primavera, com muita
sorte, e verão. Faziam parte do combo um gramado felpudo, um campo de futebol e
um parque com brinquedos entalhados em madeira. Além de mesas para piquenique
(programação que os britânicos apreciam muito nos dias sem chuva), pista para
corrida e uma quadra poliesportiva. Mas não se engane, imaginando estas e
aquelas cenas iluminadas por um sol redondo e fidalgo. Fite-as em um cenário
úmido e mofado, pois era essa a verdadeira cara e cheiro do dia a dia na
Inglaterra.
Findas as
ambientações, valho-me do artifício de reservar mais detalhes para outras resenhas
pinçadas desse um ano e meio vividos (e sobrevividos) além do Atlântico.
Em meados de
2013, as possibilidades ganharam destino, passaportes e vistos, chegando o dia
mais emblemático da nossa aventura: o embarque para Southampton. Assim como
chegou o dia, ou melhor, a madrugada, em que nos despedimos da nossa vida no
Reino Unido, percorrendo a estrada pela última vez em família, a bordo de um
taxi dirigido por um motorista movido a Red Bull. Chegada e partida, os polos
extremos, e entremeios marcados por generosas experiências. Certeza de que
essas lembranças nos abastecerão por toda a vida.