sábado, 3 de dezembro de 2016

O habitat das nossas memórias

As lembranças da nossa vida na Inglaterra me envolvem como um abraço apertado para, em seguida, dissiparem-se como flores de cerejeira no calafrio do outono. Esse devaneio surge de outra lembrança da Rua Grosvenor, onde vivemos em Southampton, e das ventanias que antecediam o inverno nas ruas precocemente escuras, articuladas pela pressa da Lua em brilhar pungente no céu enegrecido e gelado. Sol para quê, afinal?
Nossa casa era recuada e cercada por um jardim de mata virgem, nos primeiros dias, até de fato aceitarmos a incumbência britânica de manter a decência dos nossos domínios, ou seja, arbustos e arvoredos devidamente podados, garagem livre de folhas secas e espécimes originais de flores preservadas. Não obstante, a cerejeira que reinava soberana no jardim da casa vizinha, por acaso geminada a nossa, ignorava a demarcação de território e mandava para nós suas flores cálidas, muito mais lindas quando agregadas aos ramos da árvore do que caídas no chão de lajotas de cimento da nossa garagem.
Pior do que as flores no lugar errado eram as ervas daninhas que cresciam em qualquer milímetro quadrado de terra, entre as lajotas, inclusive. Nos primeiros meses na casa, final de verão, arrancávamos as ditas cujas no braço, só que logo voltavam a crescer ainda mais espaçosas. Em suma, não haveria como percorrer o lar das nossas vivências na ilha da Rainha sem nos delongarmos nos aposentos da natureza. É compreensível que os países britânicos apresentem, quem sabe, os mais belos jardins do mundo. E também a grama mais profícua que já tive a oportunidade de testemunhar crescer, em minha breve e remota vida de jardineira amadora.
Tínhamos um jardim bastante fértil nos fundos da casa, no qual vimos crescer frutas silvestres como morangos e amoras, bem como rosas em degrade de tons quentes para aquecer os dias frios. A magia do inverno era fazer desaparecer qualquer indício de cor naquele quintal virtuoso, bastasse o relógio marcar quatro horas da tarde, ou ainda menos. Daí, tudo o que se via, ou não, era breu, engolindo todos os jardins, e casas, e pessoas. Tão grande era a fome da escuridão que cabia todo o bairro dentro dela. Ao breu pesa a culpa pelos caracóis que desavisada esmaguei, nas vezes em que saía do carro estacionado em frente a nossa casa. Na nossa rua, em especial, havia postes em quantidade moderada, mas não tanto quanto o gasto com energia elétrica pela prefeitura da cidade. Não por menos, a herança de duas guerras mundiais pesa nos bolsos.
No final da Rua Grosvenor, localizava-se um edifício grande e horizontal, possivelmente inspirado na arquitetura vitoriana, arrisco-me afirmar. Se não, qualquer outro modelo tipicamente inglês caracterizado pela montagem de tijolos vermelhos encarnados, unidos um a um pela cal esbranquiçada, já encardida ou desgastada nos dias de hoje. Para nossa felicidade, tratava-se da escola primária onde nosso filho mais velho estudaria enquanto estivéssemos por ali. O mesmo caminho da roça nos levava ao parque comunitário nos finais das tardes de primavera, com muita sorte, e verão. Faziam parte do combo um gramado felpudo, um campo de futebol e um parque com brinquedos entalhados em madeira. Além de mesas para piquenique (programação que os britânicos apreciam muito nos dias sem chuva), pista para corrida e uma quadra poliesportiva. Mas não se engane, imaginando estas e aquelas cenas iluminadas por um sol redondo e fidalgo. Fite-as em um cenário úmido e mofado, pois era essa a verdadeira cara e cheiro do dia a dia na Inglaterra.
Findas as ambientações, valho-me do artifício de reservar mais detalhes para outras resenhas pinçadas desse um ano e meio vividos (e sobrevividos) além do Atlântico.
Em meados de 2013, as possibilidades ganharam destino, passaportes e vistos, chegando o dia mais emblemático da nossa aventura: o embarque para Southampton. Assim como chegou o dia, ou melhor, a madrugada, em que nos despedimos da nossa vida no Reino Unido, percorrendo a estrada pela última vez em família, a bordo de um taxi dirigido por um motorista movido a Red Bull. Chegada e partida, os polos extremos, e entremeios marcados por generosas experiências. Certeza de que essas lembranças nos abastecerão por toda a vida.






quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Um vaso sem flores e uma boneca

Era para ser um vaso com flores, mas amanheceu um vaso dourado com delicadas fitas de cetim entrelaçando uma circunferência vazia. A menina percebeu o desfalque e foi só interjeições:
-Oh, não! As flores sumiram!
Como assim, sumiram? Não, elas morreram. Fui eu quem as tirou daí. Joguei-as fora...
A menina se apoderou de súbito do vaso que era levinho, além de delicado. Olhou para o interior vazio e fez um bico de desapontamento. Ou seria de descrença? O que fosse!
- Como as flores morrem?
Elas estragam, caem as pétalas, ficam murchas, perdem as folhas. Não é muito diferente da gente, não. Embora esse detalhe eu tenha ocultado dela naquele momento.
-Por que elas morrem, mamãe?
Morrem porque lhes falta água. Às vezes luz... Ou porque elas têm de morrer mesmo, quando dá o tempo delas.
A menina correu para a área de serviço; foi conferir o cesto de lixo. Ali estavam as finadas: pétalas escurecidas nas bordas remetendo ao sombreamento delineado por um hábil artista. Jaziam, porém, tristonhas, apagadas. O cetim enrugou em toda a extensão da planta. Não havia o que fazer por elas. Acabou-se.
Cedo ou tarde se chega a determinado ponto da compreensão em que a morte deixa de ser questionada para ser aceita. Se bem que, aceitar totalmente, talvez nunca o seja por essa eternidade que vive dentro da gente.  Nascer é bem mais fácil para a nossa infinidade, mas é a morte que dá o tom à nossa finitude. Deu para entender? Não se trata apenas de aspectos fisiológicos.
Coube à menina encerrar a conversa. Distraiu-se, o que não é surpresa para seus três anos de vivacidade.
O dia escorregou mal-e-mal ligeiro. A noite chegou espontânea e a hora de dormir caiu como uma luva para os bocejos das crianças. O rito para o sono começa. Escovar os dentes, fazer a última gota de xixi, conferir a cama. Ei, cadê a boneca? Aquela boneca de veludo que completa o aconchego das cobertas e o carinho dos dedos que roçam a bochecha rosada da menina. A naninha de saião rodado. Sumiu, dispara um desavisado.
-Sumiu não – avisa a menina- Ela morreu!
Como assim, morreu? Bonecas não morrem.
- Morrem sim!
Justifiquei que bonecas não morrem, pois nunca foram vivas.
- Não morrem? Então só a flor morre?
Já sentiu um aperto no peito? Como se várias fitas delicadas de cetim amarrassem a circunferência carnosa do seu coração? Foi essa a sensação em resposta àquela pergunta: “Só flor morre?”
Pudera lhe dizer que sim, mas a resposta obviamente teve de ser um não. Todos os seres vivos morrem, desde a flor até os animais. A gente mata bactérias, por exemplo. Quem se lembra que também são vivas? Só na hora da dor de garganta, diga-se de passagem.
A menina estava em pé como se guardasse a porta do armário. Nesse instante se afastou e abriu a porta da bagunça. Foi de onde tirou a boneca. Eis o milagre: a naninha reviveu.
E assim se encaixa a primeira peça no quebra cabeça que a gente leva a vida toda montando, mas que, contudo, sempre nos faltará a derradeira peça.


quinta-feira, 2 de junho de 2016

No more tears

O caçula não se dá bem com portas fechadas, talvez por uma intolerância adquirida ao nascer, quando todos os empecilhos biológicos acabaram por ser dramaticamente rompidos para a saída triunfal do útero.

O menino pensa que todas as entradas e saídas devem estar escancaradas ao seu bel prazer. Ele chega sorrateiro, empurrando a porta ora encostada, ora entreaberta. Mal consigo visualizar mentalmente a cena sem sucumbir ao riso. Agora, agorinha, até posso, mas à hora do banho não me é agradável, nem engraçado, tirar o xampu da cabeça sendo observada pelos olhos terrivelmente ressentidos do pequeno intruso. Sem contar a sonoplastia que é de cortar o coração. Ele manda muito bem no choro. Sim, digamos que o rapaz tem talento. O estribilho é de livre autoria minha:

Não, mãe...
Não foi esse o nosso contrato;
Não, mãe...
Banho não pode, não.

E ele se segura no batente para não desmoronar, ato falho do qual a porta o salva por um triz. A pele felpuda do bebê vai se enrubescendo num rompante febril até que o frenesi alcança o nível máximo da frustração. Que pensamento poderia levá-lo a sofrer tanto? Talvez confabule, em parco e inocente vocabulário, que a mãe jamais sairá do banho, considerando que o “jamais” em sua percepção de tempo possa equivaler a breves cinco minutos.

Será a mesma percepção de tempo que tenho em relação à sua primeira infância, tão longa enquanto durar? Quando se passarem os breves cinco minutos disfarçados de dias, meses e anos, talvez eu tome seu lugar à porta. Obviamente não àquela, mas à porta que se abre ao novo. Estarei aguardando-o chegar ao longe, uma vez mais, ansiosa por ouvir o ritmo oco dos seus passos. Antevejo-me com os olhos molhados, a pele febril e a voz abafada.

Quando se passarem esses tais cinco minutos, ele entenderá que apenas as portas certas se abrirão para ele.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Tempo de esperar

As férias escolares já estão acabando. Dessa vez passaram rápido demais; duraram menos do que os segundos que o filho caçula precisa pra cair, no intervalo entre duas piscadas. Ontem à noite comecei o trabalho de etiquetar lápis, canetas, giz de cera. Um por um, pede a escola sem perdoar minha caligrafia capenga. O pior ainda não comecei que será encapar uma caixa. Uma caixa só, poxa. Nem posso me queixar dessa vida de boemia. Minha mãe encapava cadernos e livros todos os anos, de três filhas.
Tive de fazer o serviço às escondidas, depois que a menina foi dormir. De dia, quando ameacei começar a jornada, ela se assanhou toda, tão feliz que está de estrear na escola. Os olhos brilham frente ao baldinho de areia, dos mais simples que se possa encontrar nas papelarias do centro. “E o estojo de princesas, é meu?” pergunta sem se perceber repetitiva. Absolutamente tudo naquela sacola reluz a ouro pra ela. Etiquetas vazias, inclusive.
A escola fica em frente à nossa casa, o que para as crianças é um privilégio. Todos os dias, durante as férias, ela olhava pela sacada para acompanhar a reforma do playground. Afinal, sonha brincar com o baldinho roxo na areia. Ela quer tirar os sapatos e afundar os dedos gordinhos no colchão de grãos microscópicos de onde o vidraceiro tira vidro. Já a menina tira diversão pura, cristalina. Não dá para competir.
Verdade seja dita, talvez eu estivesse trabalhando fora caso o destino houvesse seguido outro caminho. Ano passado sinalizou que aconteceria, mas ainda não foi hora. Quando tiver de ser, será.  Ah, se além de falar a escrita suspirasse! Far-me-ia um grande favor. Em compensação, terei a oportunidade de vê-la entrar pelo portão da Rua Uruguaiana calçando os tênis de cano alto em seu primeiro dia de aula de todos os tempos. Uma cena que se perderá na memória de um senhor chamado tempo, mas não na minha.
Entre um parágrafo e outro desse texto, faço intervalos pra brincar de esconde-esconde com a menina. Ela quer emendar pega-pega, mas isso já não posso antes de preparar nosso almoço. Logo o bebê acorda e o mais velho termina de derrotar o time do vídeo game em uma partida de futebol que não pode, virtualmente, ir para prorrogação. Peço licença e saio. Quem sabe volte depois. A tarde sempre promete.