quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Dente de Leite

Dente nascendo não é fácil para ninguém. Não é fácil para os pais, para os irmãos e, claro, para o bebê. Pede-se, rogando, para que ninguém em casa faça barulho, pois, uma pena de passarinho tocando o asfalto frente ao edifício, já seria suficientemente audível para interromper o sono fugaz da vítima do dente de leite.  
Quando a mãe reforça o pedido de misericórdia: “não faz barulho, por favor...”, a menina sussurra ao invés de falar. Há muita graça no movimento que ela faz com os lábios, formando uma dobra de origami, do qual surge uma única palavra: “Filme”... Seria desnecessário dizer mais; a mensagem vem completa, como em código morse.
Ela acompanha a mãe até o quarto a fim de pegar o DVD. Antes, contudo, tem-se de abrir a porta... Ah... A porta... Esqueceu-se de colocar óleo nas dobradiças. Por isso que range, a chata. E o ruído é ainda mais ácido quando a casa aspira silêncio.
Faça-se saber que primeiro dente é tão melindroso quanto é aguardado. Faz uma entrada triunfal e nem ficará na boca da criança por muito tempo... Um dia vai cair e, quando esse momento chegar, far-se-á um “auê” em torno do acontecimento. Será barulho à beça. Não vai ter mãe com cara de misericórdia controlando a intensidade com que os pés dos filhos mais velhos estalam no chão de madeira.
A menina, ela mesma, vem trazer a notícia de que o bebê acordou. A soneca passou tão rápido que a mãe nem sentiu. Pois a vida passa tão rápido ou mais, reza o discurso que a gente dita e acredita. Bem por isso que a mãe coleciona dentes de leite que nunca foram dela, dentro de memórias adormecidas. Mais dia, menos dia, uma porta se abrirá e as dobradiças rangerão surdamente, despertando as lembranças mais fugazes. Ah, sim, e as noites prometem: serão mais longas.  




quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Das minhas reminiscências

A casa diz ser britânica, de pedigree Edwardiano, atestado pelas amplas janelas abauladas e por chaminés ao estilo Mary Poppins. Mas dentro da sóbria construção de tijolos vermelho escarlate, espirrados que foram da Revolução Industrial, reina absoluto o aroma brasileiro. É o perfume da refoga onde caem os feijões mexicanos de nome lusitano interessante: pinto. Estapafúrdio, como diria a senhora prolixidade.
A menina vem correndo lá da sala. Ouça os passos curtos e ligeiros; inconfundíveis. Ela se aproxima da porta da cozinha, levanta os braços na beirada do fogão. Quer ver o bronze do caldo de feijão borbulhante. Pula para fora do cerco dos braços da mãe, alcança o babador de borracha, veste-o apressadamente como quem diz “a fome quer comer”. Eis aí a prova de que o país da gente vem servido no DNA, não se escolhe no cardápio depois que nasce.
Em um piscar de olhos a menina já está sentada, prato feito na bandeja do cadeirão; dá-se início à perseguição aos grãos de feijão. As vítimas são espetadas com um pequeno garfo de cutelaria infantil, encontradas que sejam embaixo do legume ou da mistura, que hoje é salsicha. Mesmo os grãos mais garridos a menina encontra, e mal deu tempo de disparar o grito “Achei!”, são logo engolfados. Já disse e repito: dá gosto ser a cozinheira que refoga o feijão para essa menina.



sexta-feira, 14 de agosto de 2015

No vilarejo de Chawton

Em junho de 2014, visitamos uma das casas onde viveu Jane Austen, a proeminente escritora britânica falecida nos primórdios do século XIX.  A propriedade está localizada em uma pequena vila nos arredores de Winchester, cidade que já foi capital política da Inglaterra e que hoje abriga nada mais, nada menos, do que a lendária Távola Redonda, centenas de anos depois que se foram os cavaleiros.
Voltando à casa dos Austen, trata-se de uma propriedade muito bem conservada, assim como todos os edifícios históricos que visitamos na Inglaterra. A residência, que data da transição do século XVIII para XIX, possui três ou quatro quartos, salas de estar e jantar, cozinha, além de um imenso e esplendoroso jardim. Não, eu não me esqueci dos banheiros. Banheiros dentro de casa eram portáteis, ficavam embaixo das camas, à disposição dos moradores e se chamavam penicos ou bispotes, como o leitor preferir.
O mobiliário da época é fantástico, e também não resisti à tentação de me caracterizar com a indumentária típica de uma senhorita Austen. Mas nada me chamou tanto a atenção quanto o lindo jardim que circunda os fundos e laterais da casa. Decerto que o gramado em perfeito verde tem sido mantido por funcionários atuais, o que não nos garante ter sido tão reluzente em tempos habitáveis da casa, mas não vejo mal algum em imaginar que sim.
Se existe algo que aprendi, vivendo na Inglaterra, foi a apreciar jardins. Não sei quanto aos demais britânicos, mas os ingleses são primorosos jardineiros. Alugamos uma casa durante nossa estadia em Southampton, cujo contrato de locação colocava igual peso na conservação interna e externa da casa, de modo que a manutenção da flora do jardim era tão fundamental quanto devolver a casa com o piso em bom estado e a pintura das paredes limpa.
Explica-se, dessa feita, o belo jardim na propriedade que pertenceu à família Austen, naquele exato dia ocupado por um grupo de aproximadamente vinte adolescentes orientais. Na ausência de bancos, as estudantes se sentaram no gramado para uma aula ao vivo e a cores sobre a literatura de Jane Austen. Se me permitem especular qual obra era estudada, arrisco “Pride and Prejudice” (Orgulho e Preconceito), carro chefe da romancista inglesa, que também é uma das minhas autoras preferidas.
Seguido ao inexplicável sentimento de posse que me acometeu por aquele jardim, ao ponto de me incomodar com um grupo de garotas desconhecidas pisando na minha grama, entreguei-me a um momento de puro devaneio. Entre um episódio e outro de realidade, fechei os olhos e visualizei Jane Austen no auge de seus trinta e tantos anos, quem sabe sentada em uma banqueta de madeira crua, confabulando com as plantas ideias para novos escritos. Acredito que suas tardes tenham sido recheadas por momentos de contemplação àquela natureza de encher os olhos, pois consta nos registros que não se casou e, por conseguinte, não teve filhos. Sobrava-lhe tempo, talvez. Não a toa que tenha concentrado os motes de suas obras nas tramas e artimanhas do romance e nas mazelas sociais. E haja chá das cinco, que, a propósito, corresponde a uma refeição completa que os ingleses chamam apenas de “tea” e nós, de jantar.
Pensando bem, talvez Jane Austen tenha sido vítima do excesso de tranquilidade comum aos bucólicos vilarejos que pipocam na Inglaterra, inclusive na Era da Pós Modernidade. Deduz-se o fato a partir de cartas que a romancista remeteu aos parentes mais próximos quando ainda residia na cidade de Bath, localizada no Condado de Somerset. Nelas, lê-se uma Jane queixosa de enfado e monotonia. Quem sabe, em Winchester, não tenha sido diferente.
Mas também contemplei uma Jane absorta nos afazeres diários que uma casa rústica daquele porte demandava, sem geladeira, fogão elétrico e outras comodidades modernas obrigatórias, salvo na residência de uma família Amish no interior dos Estados Unidos. Imaginei-a em volta do fogão à lenha, aceso, dispondo pequenos scones (um tipo de pão caseiro de origem escocesa, muito popular em todo Reino Unido) para assar em grandes tachos enfarinhados com o trigo cultivado no Condado de Hampshire. Apesar dos períodos de vacas magras, a família de Jane Austen teve lá suas posses, modestas alguém diria, principalmente se a referência for as joias da coroa.
E estamos novamente no jardim da casa, observando o grupo de estudantes orientais. Cada uma delas apoiando seu iPod ou notebook como possível, sobre os braços ou pernas cruzadas. E a aula transcorre circunspecta, a julgar pela gravidade das fisionomias. Ruído ali só se for uma bumblebee desavisada. As bumblebees frequentam os jardins britânicos fazendo a vez das nossas abelhas franzinas. Grosso modo, eu diria que são abelhas de pelúcia avantajadas, daquelas que com certeza nunca vi igual abaixo da Linha do Equador.
Nossas jovens continuam concentradas nos postulados literários, a despeito das bumblebees. Tenho certeza de que Jane Austen notaria um inseto que desafiasse o silêncio do jardim. E ainda digo mais: Quero acreditar que escrevia seus romances despretensiosamente, como o faz uma criança ao brincar com seu brinquedo favorito. As críticas de cunho social somos nós que enxergamos do lado de fora. Escritores, muitas vezes, preferem enxergar abelhas e o caminho que elas fazem. Acho que eu a compreendo, Jane. Hoje, por exemplo, é só o que quero ver.
Quase dois séculos depois refiz seu caminho, que culminou no vilarejo de Chawton, esse mesmo onde está a casa. Jane Austen não saiu da região de Winchester; seus restos mortais estão enterrados sob o mármore da principal catedral da velha cidade, primeiro endereço da escritora que visitamos na Inglaterra. Lá, repousa simples e serena, a senhorita Austen.