sábado, 20 de dezembro de 2014

O melro e a árvore



Outro dia, não importa quando, conversei com um melro pela janela entreaberta do quarto da menina. Mas antes que eu prossiga na transcrição do nosso diálogo, devo adverti-los a não considerar loucura o que talvez sejam meras elucubrações, que, na prática, acabam sendo artifícios bem diferentes. Após o diálogo, que não passou de três minutos, o pássaro voou sem qualquer explicação tangível, já que não precisa de uma. Ele é um ser alado.
“O que faz aí, no topo dessa árvore despida pelo vento?”
“Aqueço o galho, já que as folhas não mais o aquecem...”
“Olha só! Eu o julguei tão solitário... De qualquer forma, gostaria da minha companhia?”
“Sua parceria quebraria um galho, mas...”
“Corrigindo, senhor melro: por certo quebraria vários...”
“Ainda que fosse! Agradecido. Mas preciso dessa imensidão toda somente pra mim. Você vê no meu isolamento, solidão. Daqui eu vejo outros pássaros. Logo, não estou só.”
“Poupe-me! Você é o único se equilibrando sobre o galho...”
“No momento, sim, sou único. Sabe de uma coisa? Olhe lá para baixo. Vê também o que vejo? Outros iguais a mim? Nós nos revezamos... Não nascemos para viver aqui, no topo da árvore, apesar de conhecê-lo tanto quanto o gramado do seu jardim. Temos asas para alçar voo e patas para aterrissar. Se porventura nossas asas não funcionassem no céu, continuaríamos sendo aves. Não é o caso da ema e do casuar, por exemplo? Contudo, se nos faltassem patas e garras afiadas brotando da extremidade delas, seríamos escravos da nossa própria liberdade. Não haveria sina mais cruel do que a ausência de papilas com as quais saborear nosso instinto. Vou lhe dizer como nos definiriam: criaturas continuamente sozinhas, confinadas ao topo de uma árvore.”
“Concordo, mesmo porque não é assim que eu gostaria de me encontrar...”
“Decerto que não. Meu silêncio, se não foi por isso que você não tenha recebido asas! Onde estão as garras que lhe prendem ao chão? Mostre-me nas! Viu? Exatamente o que supus: não são desenvolvidas. Talvez expliquem a ausência de um par de asas em você, muito embora sua mente  permita-lhe concebê-las. Ademais, estive pensando...”
“Espera lá... Por acaso melro pensa?”
“E por que não? Pois se você me deu palavras, e eu não tenho boca, não lhe custaria nada incutir algumas delas em meus pensamentos e imaginar que também tenho um!”
“Desculpe-me, pode continuar...”
“Provavelmente vocês seriam criaturas mais livres do que nós se não fizessem do voo um cativeiro, nem perderiam uns aos outros tentando se encontrar. Encontrar-se-iam no outro.”
“E isso é possível?”
“Bem, você me ouve, não? E sou apenas um pássaro. Trago na plumagem a sobriedade da experiência e a inquietação do novo. Equilibro-me entre uma e outra certeza, antes de me entregar ao acaso desse galho seco.”
Nesse ponto, o melro decolou. Pássaros não fazem cerimônia para sumir no céu, conquanto façam parte dele em algum momento de sua existência. E, enquanto a transição acontecia, eu sustentava a menina dos pés descalços no peitoril da janela. Engolindo ar gelado, ambas estávamos. Mas quando pensei ter abandonado minha busca de mim, em nome de uma circunstância, foi que me encontrei por meio dela. Definitivamente, o melro estava certo.




sábado, 29 de novembro de 2014

No Tate Modern Museum


Desde o instante em que capturei essa imagem, contraí dívida com uma nova história. De lá para cá se passaram longos e fartos meses a ponto de nem mais saber de cabeça a data exata em que foi registrada, exceto de que aconteceu em uma de nossas idas à Londres. Na ocasião, estávamos visitando o Tate Modern Museum a pedido da nossa hóspede que, por ser artista, entende de arte; e, por ser minha irmã, entende da minha quase total ignorância sobre o assunto.
Já, os filhos, esses não compartilham da dominância de todos os nossos genes, e ainda bem por isso, de forma que meu mais velho nasceu predisposto a se tornar um artista. Anos atrás não saberia dizer ao certo se o menino é dado a ser artista ou arteiro, contudo, desde o advento de uma menina em nossas vidas, ficou clarividente que o menino é artista enquanto a menina só poderia ser arteira.
Voltando ao passeio, bem provável que essa curta viagem à Londres tenha ocorrido em um sábado. Certeza absoluta, porém, de que não foi em dia de sol. Sinto, inclusive, gotas finas de garoa apagando os traços que me falham na memória, o que não vem ao caso na compreensão da arte ou da história.
Dentro do museu me chamou à atenção o pé direito absurdamente alto e a grande quantidade de corredores sugerindo um labirinto projetado por Dédalo, motivo pelo qual já me encontrava mentalmente perdida em um deles. Seguimos, eu e o menino, por um amplo corredor do piso superior que desembocava em uma sala cujas paredes foram tingidas em ocre tão orgulhoso quanto vibrante, quebrando a monotonia dos olhos da gente. Logo à entrada havia uma espécie de bancada, protegida por vidro, onde eram expostas as obras do artista cujo nome não me lembro de pronto.
Mas me lembro de ter explorado o acervo em insuperáveis dois minutos, contrapondo ao menino que se demorou em cada um dos contornos denunciados pelo grafite. Haja vista o disparate, enrubesci de vergonha, presumindo-me muito objetiva em resposta à subjetividade que as obras exigiam de mim. Diminuí a marcha, saquei meu celular do bolso da calça jeans e fotografei algumas das gravuras, movida agora por novo interesse. Dali a pouco retornou o menino, vindo da outra extremidade da bancada, como faria o carretel escorregadio de uma máquina datilográfica chegando à eminência de uma das margens do papel. Perguntei: “E então, está gostando das gravuras?”
Ele franziu a testa, retorceu os lábios justapostos e antes que eu conseguisse extrair alguma mensagem subliminar dessa feição impressionista, respondeu-me com outra pergunta “Ele era criança, né?”
“Como assim?” repliquei, tentando disfarçar que achava graça do comentário.
 “Ele (o artista)... Quando fez esses desenhos... Era da minha idade. Não era?”
Tenho cá pra mim que caso os outros adultos estivessem ouvindo nossa conversa, responderiam, em uníssono, com um grave e revoltado não. Alguns, quem sabe, menos ofendidos, teriam se rendido ao riso. No entanto todos estariam de acordo que o artista já era crescido quando criou as formas borradas pelos rastros de grafite. Que me perdoem os acadêmicos, mas foi divertidíssimo rever aquelas gravuras à luz da interpretação espontânea e sincera de uma criança.
Quem dera todos os museus dispusessem de guias infantis durante incursões culturais como essa, pois tornariam os matizes ainda mais brilhantes, as esculturas ainda mais sinuosas e os corredores ainda mais convidativos. Seriam autênticos mecenas da arte moderna.
Não fosse a fecundação, mote que inspirou a gravura da foto, um tema demasiadamente adulto, concordaria com o menino sem desmerecer o talento do autor e o valor artístico da obra, porquanto, fecunda mesmo, é a curiosidade dos aspirantes à artista que um dia já fomos.