Outro dia, não
importa quando, conversei com um melro pela janela entreaberta do quarto da
menina. Mas antes que eu prossiga na transcrição do nosso diálogo, devo adverti-los a não considerar loucura o que talvez sejam meras elucubrações, que, na prática,
acabam sendo artifícios bem diferentes. Após o diálogo, que não passou de três
minutos, o pássaro voou sem qualquer explicação tangível, já que não precisa de
uma. Ele é um ser alado.
“O que faz aí, no topo dessa árvore despida pelo vento?”
“Aqueço o galho,
já que as folhas não mais o aquecem...”
“Olha só! Eu o
julguei tão solitário... De qualquer forma, gostaria da minha companhia?”
“Sua parceria
quebraria um galho, mas...”
“Corrigindo,
senhor melro: por certo quebraria vários...”
“Ainda que fosse! Agradecido. Mas preciso dessa imensidão toda somente pra mim. Você vê no meu isolamento, solidão. Daqui eu vejo outros pássaros. Logo, não estou só.”
“Poupe-me! Você
é o único se equilibrando sobre o galho...”
“No momento,
sim, sou único. Sabe de uma coisa? Olhe lá para baixo. Vê também o que vejo? Outros
iguais a mim? Nós nos revezamos... Não nascemos para viver aqui, no topo da
árvore, apesar de conhecê-lo tanto quanto o gramado do seu jardim. Temos asas
para alçar voo e patas para aterrissar. Se porventura nossas asas não
funcionassem no céu, continuaríamos sendo aves. Não é o caso da ema e do casuar,
por exemplo? Contudo, se nos faltassem patas e garras afiadas brotando da extremidade
delas, seríamos escravos da nossa própria liberdade. Não haveria sina mais
cruel do que a ausência de papilas com as quais saborear nosso instinto. Vou
lhe dizer como nos definiriam: criaturas continuamente sozinhas, confinadas ao
topo de uma árvore.”
“Concordo, mesmo porque não é assim que
eu gostaria de me encontrar...”
“Decerto que
não. Meu silêncio, se não foi por isso que você não tenha recebido asas! Onde estão as garras
que lhe prendem ao chão? Mostre-me nas! Viu? Exatamente o que supus: não são desenvolvidas. Talvez expliquem a ausência de um par de asas em você, muito
embora sua mente permita-lhe concebê-las. Ademais, estive pensando...”
“Espera lá... Por
acaso melro pensa?”
“E por que não? Pois
se você me deu palavras, e eu não tenho boca, não lhe custaria nada incutir
algumas delas em meus pensamentos e imaginar que também tenho um!”
“Desculpe-me,
pode continuar...”
“Provavelmente
vocês seriam criaturas mais livres do que nós se não fizessem do voo um
cativeiro, nem perderiam uns aos outros tentando se encontrar. Encontrar-se-iam
no outro.”
“E isso é
possível?”
“Bem, você me
ouve, não? E sou apenas um pássaro. Trago na plumagem a sobriedade da experiência
e a inquietação do novo. Equilibro-me entre uma e outra certeza, antes de me
entregar ao acaso desse galho seco.”
Nesse ponto, o
melro decolou. Pássaros não fazem cerimônia para sumir no céu, conquanto façam
parte dele em algum momento de sua existência. E, enquanto a transição acontecia, eu
sustentava a menina dos pés descalços no peitoril da janela. Engolindo ar
gelado, ambas estávamos. Mas quando pensei ter abandonado minha busca de mim,
em nome de uma circunstância, foi que me encontrei por meio dela.
Definitivamente, o melro estava certo.